sábado, 28 de janeiro de 2012

Por um pé de feijão - Antônio Torres

Nunca mais haverá no mundo um ano tão bom. Pode até haver anos melhores, mas jamais será a mesma coisa. Parecia que a terra (á nossa terra, feinha, cheia de altos e baixos, esconsos, areia, pedregulho e massapê) estava explodindo em beleza. E nós todos acordávamos cantando, muito antes do sol raiar, passávamos o dia trabalhando e cantando e logo depois do pôr-do-sol desmaiávamos em qualquer canto e adormecíamos, contentes da vida.
Até me esqueci da escola, a coisa que mais gostava. Todos se esqueceram de tudo. Agora dava gosto trabalhar.
Os pés de milho cresciam desembestados, lançavam pendões e espigas imensas. Os pés de feijão explodiam as vagens do nosso sustento, num abrir e fechar de olhos. Toda a plantação parecia nos compreender, parecia compartilhar de um destino comum, uma festa comum, feito gente. O mundo era verde. Que mais podíamos desejar?
E assim foi até a hora de arrancar o feijão e empilhá-lo numa seva tão grande que nós, os meninos, pensávamos que ia tocar nas nuvens. Nossos braços seriam bastantes para bater todo aquele feijão? Papai disse que só íamos ter trabalho daí a uma semana e aí é que ia ser o grande pagode. Era quando a gente ia bater o feijão e iria medi-lo, para saber o resultado exato de toda aquela bonança. Não faltou quem fizesse suas apostas: uns diziam que ia dar trinta sacos, outros achavam que era cinqüenta, outros falavam em oitenta.
No dia seguinte voltei para a escola. Pelo caminho também fazia os meus cálculos. Para mim, todos estavam enganados. Ia ser cem sacos. Daí para mais. Era só o que eu pensava, enquanto explicava à professora por que havia faltado tanto tempo. Ela disse que assim eu ia perder o ano e eu lhe disse que foi assim que ganhei um ano. E quando deu meio-dia e a professora disse que podíamos ir, saí correndo. Corri até ficar com as tripas saindo pela boca, a língua parecendo que ia se arrastar pelo chão. Para quem vem da rua, há uma ladeira muito comprida e só no fim começa a cerca que separa o nosso pasto da estrada. E foi logo ali, bem no comecinho da cerca, que eu vi a maior desgraça do mundo: o feijão havia desaparecido. Em seu lugar, o que havia era uma nuvem preta, subindo do chão para o céu, como um arroto de Satanás na cara de Deus. Dentro da fumaça, uma língua de fogo devorava todo o nosso feijão.
Durante uma eternidade, só se falou nisso: que Deus põe e o diabo dispõe.
E eu vi os olhos da minha mãe ficarem muito esquisitos, vi minha mãe arrancando os cabelos com a mesma força com que antes havia arrancado os pés de feijão:
- Quem será que foi o desgraçado que fez uma coisa dessas? Que infeliz pode ter sido?
E vi os meninos conversarem só com os pensamentos e vi o sofrimento se enrugar na cara chamuscada do meu pai, ele que não dizia nada e de vez em quando levantava o chapéu e coçava a cabeça. E vi a cara de boi capado dos trabalhadores e minha mãe falando, falando, falando e eu achando que era melhor se ela calasse a boca.
À tardinha os meninos saíram para o terreiro e ficaram por ali mesmo, jogados, como uns pintos molhados. A voz da minha mãe continuava balançando as telhas do avarandado. Sentado em seu banco de sempre, meu pai era um mudo. Isso nos atormentava um bocado.
Fui o primeiro a ter coragem de ir até lá. Como a gente podia ver lá de cima, da porta da casa, não havia sobrado nada. Um vento leve soprava as cinzas e era tudo. Quando voltei, papai estava falando.
- Ainda temos um feijãozinho-de-corda no quintal das bananeiras, não temos? Ainda temos o quintal das bananeiras, não temos? Ainda temos o milho para quebrar, despalhar, bater e encher o paiol, não temos? Como se diz, Deus tira os anéis, mas deixa os dedos.
E disse mais:
- Agora não se pensa mais nisso, não se fala mais nisso. Acabou. Então eu pensei: O velho está certo.
Eu já sabia que quando as chuvas voltassem, lá estaria ele, plantando um novo pé de feijão.


A colheita é o ápice da vida do lavrador. O momento no qual o homem do campo fecunda a terra é o tempo da esperança, mas também da angústia, pois, se os frutos forem bons, haverá fartura, mas há fatores que fogem do alcance do homem e estes mesmos podem destruir o trabalho de muito tempo em alguns segundos.
No conto "Por um pé de feijão" de Antônio Torres, o protagonista relembra um tempo passado, o melhor de todos os anos, no qual ele vive a esperança e a alegria dos dias que antecedem a colheita.
"Nunca mais haverá no mundo um ano tão bom. Pode até haver anos melhores, mas jamais será a mesma coisa. Parecia que a terra (á nossa terra, feinha, cheia de altos e baixos, esconsos, areia, pedregulho e massapê) estava explodindo em beleza. E nós todos acordávamos cantando, muito antes do sol raiar, passávamos o dia trabalhando e cantando e logo depois do pôr-do-sol desmaiávamos em qualquer canto e adormecíamos, contentes da vida." (TORRES, Antônio. Por um pé de feijão)
A família está unida no trabalho e, trabalhar não é uma obrigação, mas sim, um "gosto". O feijão britou da terra e nada aconteceu para impedir seu desenvolvimento...nenhum fator natural, destruiu a plantação.
Se no episódio da "Criação do mundo" descrito na Bíblia o homem foi criado para cuidar do jardim, no conto citado homem e terra são dependentes um do outro.
"Deus disse: ‘Que a terra verdeje de verdura: ervas que dêem semente e árvores frutíferas que dêem sobre a terra, segundo a sua espécie, frutos contendo a sua semente’, e assim se fez. A terra produziu verdura: ervas que dão semente segundo a sua espécie, árvores que dão, segundo sua espécie, frutos contendo sua semente, e Deus viu que isso era bom. Houve uma tarde e uma manhã: terceiro dia" (Gn 1,11-13).
"Deus disse: ‘Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança, e que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra" (Gn 1,26).
"Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher os criou. Deus os abençoou e lhes disse: ‘Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que rastejam sobre a terra’. Deus disse: ‘Eu vos dou todas as ervas que dêem semente, que estão sobre toda a superfície da terra, e todas as árvores que dão frutos que dêem semente: isso será vosso alimento. A todas as feras, a todas as aves do céu, a tudo o que rasteja sobre a terra e que é animado de vida, eu dou como alimento toda a verdura das plantas’, e assim se fez. Deus viu tudo o que tinha feito: e era muito bom. Houve uma tarde e um manhã: sexto dia" (Gn 1,27-31).
Podemos fazer outras ligações (ainda mais claras) entre o conto e a Bíblia. As apostas feitas no conto de como seria virtuosa a produção podem ser comparadas à parábola do semeador.
"Era quando a gente ia bater o feijão e iria medi-lo, para saber o resultado exato de toda aquela bonança. Não faltou quem fizesse suas apostas: uns diziam que ia dar trinta sacos, outros achavam que era cinqüenta, outros falavam em oitenta."(TORRES, Antônio. Por um pé de feijão)
"Disse ele: Um semeador saiu a semear. E, semeando, parte da semente caiu ao longo do caminho; os pássaros vieram e a comeram.Outra parte caiu em solo pedregoso, onde não havia muita terra, e nasceu logo, porque a terra era pouco profunda.Logo, porém, que o sol nasceu, queimou-se, por falta de raízes.Outras sementes caíram entre os espinhos: os espinhos cresceram e as sufocaram.Outras, enfim, caíram em terra boa: deram frutos, cem por um, sessenta por um, trinta por um." (Mt 13, 4-8)
Quando o jovem narrador tem, diante de seus olhos, a tragédia da destruição dos campos de feijão, temos o paradoxo entre a esperança bíblica da plantação e o desespero do fogo que destrói a alegria da família.
"E foi logo ali, bem no comecinho da cerca, que eu vi a maior desgraça do mundo: o feijão havia desaparecido. Em seu lugar, o que havia era uma nuvem preta, subindo do chão para o céu, como um arroto de Satanás na cara de Deus. Dentro da fumaça, uma língua de fogo devorava todo o nosso feijão.
Durante uma eternidade, só se falou nisso: que Deus põe e o diabo dispõe."
(TORRES, Antônio. Por um pé de feijão)
Qual será a salvação da lavoura? A força paterna. Enquanto todos lamentam, o patriarca percebe que ainda há como sobreviver, pois existe a força para o trabalho, mesmo que o vento leve a última cinza do feijão queimado pela maldade humana, e, "Deus tira os anéis, mas deixa os dedos".
Enquanto o homem tiver forças para fazer aquilo para o que foi criado, cultivar o jardim, haverá esperança. E o jovem narrador percebe que o velho está certo e, quando as chuvas voltassem, o ciclo da vida continuaria e eles logo estariam fecundando a terra novamente para esperar a colheita.