quarta-feira, 6 de julho de 2011

“Auto da Índia” de Gil Vicente e “Vicente” de Miguel Torga – Comparação.



Sendo o texto de Gil Vicente uma farsa (teatro) , temos o discurso direto em todos os momentos, enquanto o conto “Vicente” é uma narrativa em terceira pessoa. Quando Gil Vicente escreveu a farsa “Auto da Índia”, com a linguagem que hoje para nós é arcaica, a fase áurea das navegações portuguesas era evidente por grandes façanhas, talvez a mais importante delas fosse o descobrimento do Brasil, país de extensão continental e povoado de riquezas naturais que garantiriam lucro aos “heróis portugueses”. Era o mar, portanto, um gigante amedrontador que havia sido vencido. No conto de Miguel Torga temos a intertextualidade com a Bíblia e um importante episódio presente nela: O dilúvio. As águas eram, naquele momento, sinal da ira de Deus pelo pecado do homem e simbolizava a destruição. O corvo, animal que tem sua imagem ligada ao “mau Agouro”, às trevas, é escolhido para representar um ato de rebeldia contra Deus; a fuga da arca é a não aceitação dos desígnios divinos.
Nos dois textos temos atitudes de rebeldia. Na farsa, AMA agradece o mar por tirar-lhe o marido e permitir-lhe viver aventuras com outros homens. No conto, Vicente voa livremente sobre as águas, num desafio a Deus e à submissão.
Mas temos uma situação comum tanto a farsa de Gil Vicente quanto ao conto de Miguel Torga; o mar representa a liberdade, a aventura, o NÃO a opressão da sociedade ou de outras forças supremas.

Manuscrito encontrado numa garrafa - Edgar Allan Poe




O mar nunca pareceu tão sombrio e enigmático como no conto “Manuscrito encontrado numa garrafa” de Edgar Allan Por. A calmaria descrita no início é mais assustadora e preocupante que qualquer procela.
Se “depois da tempestade sempre vem à bonança”, no enredo do conto citado acima, depois da bonança vem à tempestade. Desta forma, o mar é o próprio mistério, algo sobrenatural e superior ao homem que o submete a seus caprichos e as suas vontades.
O vento que sopra sobre ele dá-lhe um aspecto selvagem, como se fosse a própria morte que deseja tragar os “intrusos” que se aventuram pelas grandes águas marinhas.
O mar surge como um personagem, um antagonista que vai se opor ao angustiado protagonista que luta para manter-se vivo (ou já estaria morto?), e representa todo o horror na sua “Treva profunda” e seu negrume de ébano.
Se Castro Alves, poeta brasileiro romântico, no seu poema pessimista “Adeus” cita o mar como “O Jó eterno”, ou seja, o representante do sofrimento sem fim, podemos dizer que Poe, no desfecho do conto, dá esta característica ao mar, pois, o sofrimento e o mistério que envolvem o protagonista, além da sua angústia, não terminam, se tornam apenas um ciclo de luta psicológica e física.
Só então temos a explicação do título. Os famosos “manuscritos nas garrafas” que já foram mensageiros de amores proibidos e intensos, agora são descrições de tragédias marítimas de um marinheiro angustiado.

Iracema - José de Alencar

O mesmo mar que aproxima dois mundos pode também distanciá-los. A vida “Além- mar” do Novo Mundo é repleta de mistérios e aventuras para os descobridores. O europeu Martim esperava encontrar o amor nas índias Ocidentais? O certo é que, o primeiro contato entre ele e a índia foi fatal; logo surgiu a paixão que uniu velho e novo mundo e formou uma nova raça.
Quando Martim chega a América, encontra-se com Iracema (anagrama de América). O mar proporciona o encontro de duas culturas diferentes que logo entrariam em conflito. As águas que trazem o descobridor valente aos trópicos serve como ponte para uma nova ideia de civilização que os europeus acreditavam não ser possível existir. Quem se aventura-se neste mar poderia pagar um alto preço. Dominar o mar, segundo Fernando Pessoa, poderia custar o choro de mães, noivas abandonadas, que o tornaram salgado, tamanha a quantidade de lágrimas choradas.
Desta forma, o mar seria glória para os estrangeiros vindos do Velho Mundo, mas seria a perdição para os nativos do Novo Mundo, pois teriam suas terras invadidas e seus povos dizimados por conquistadores que não admitiam outras culturas.
Quando Martim vai embora de volta para a Europa, levando Moacir, fruto de seu amor com a índia Iracema, temos um retrato da “sina” dos nordestinos, obrigados a sair da sua terra em busca de novas coisas, novas oportunidades.
Era a formação de uma nova raça (ou etnia), a dos brasileiros, povo mestiço, consequência do sucesso ou fracasso das grandes navegações do século XVI.
O mar é, então, a fuga de volta para a casa, na qual Martim leva algo da América para si.

O velho e o Mar - ( Ernest Hemingway ) - Enquanto houver sonho, haverá luta




Ao ler um romance intrigante, logo pensamos em como seria um filme baseado nesta obra. É possível produzir uma obra cinematográfica semelhante à obra escrita? Algum diretor ou algum ator conseguirá passar para a tela grande a emoção que o personagem passou no livro?
Quando as páginas de “O velho e o mar” de Ernest Hemingway chegam ao fim, temos a sensação se missão cumprida do velho Santiago exposta aos demais pescadores da enseada e a todos os leitores. Sentimo-nos exaustos depois de tamanha luta, que não se resume apenas a conservação da integridade física, mas também a conservação da integridade moral.
O velho Santiago parece frágil fisicamente no romance, diferente do senhor gordinho que o interpreta no filme. Mas a diferença física não dificulta a interpretação do protagonista Spencer Tracy, grande representante dos tempos áureos de Hollywood.
A pele queimada de Santiago destaca-se no filme ainda mais que no romance, retificando a sua imagem de homem do mar, que tem as águas como própria casa. Sendo o velho e o mar um romance “de um homem só”, que tem sua narrativa centrada num único personagem humano que tem como oponentes um peixe e o próprio mar, que serve de alento, mas também de perigo, o filme pode se tornar enfadonho para aqueles que não sabem apreciar uma obra reflexiva, que não é centrada apenas em intrigas tipicamente sentimentalóides do ser humano.
Mas qualquer obra da sétima arte, mesmo aquelas produzidas numa época mágica como a década de cinquenta, não consegue passar na sua narrativa, a intensidade cognitiva que o romance escrito passa. Os sonhos de Santiago, seus desejos de sobrevivência, a consciência de que o mais forte sobrevive na lei da selva, ou lei do mar, não são transmitidas plenamente no filme, pois para que esta emoção seja transmitida, precisa haver interação imaginativa entre o leitor e a obra, e esta interação é mais forte e completa quando podemos saborear as frases e cada momento de luta sozinhos com a nossa mente, assim como o velho Santiago está sozinho na sua luta no mar.

O velho e o Mar (Ernest Hemingway) - Estória para pescadores e para sonhadores





O velho Lobo do mar sai à procura de sua maior conquista. Ele consegue atingir seu objetivo e, por muito tempo, o povoado vai ter o que falar. A pesca é uma das profissões mais antigas, segundo o credo popular, por ser o ofício de alguns dos apóstolos de Cristo. Lançar as redes ao mar foi se tornando uma espécie de simbologia da fartura, o mar que “Está para peixe”.
Por que Santiago teria que se auto-afirmar provando que ainda era capaz de ser um bom pescador? Talvez porque os homens necessitam disso, é a lei da “Selva”, na qual o mais forte sobrevive, por isso é necessário ser sempre o melhor e mostrar que é o melhor.
“O Velho e o Mar” não é apenas uma estória de pescador, não contêm o exagero por si só, sem alguma expectativa. Para o velho Santiago, o peixe pelo qual ele quase dá a vida, é uma prova de que ele ainda pode se sentir vivo, a confirmação de que ele existe e é bom naquilo que gosta de fazer: pescar. Nada melhor para um homem solitário do que isolar-se na imensidão das águas, nas quais ele pode enxergar-se e sentir-se parte daquela imensidão.
A tradição popular trata com humor os “causos” contados por pescadores, que garantem ter pescado peixes tão grandes que eles nem conseguiram guardar como prova, basta fiar-se na palavra. Santiago precisava de mais do que uma prova física de que foi capaz de pescar um grande peixe. Ele precisava provar a si mesmo que o mar não era páreo para ele, que ele ainda dominava a natureza quando tirava dela o fruto marinho. Era o sonho que ainda vivia, e, enquanto houver sonho, vai haver vida.